Diia de chuva...

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   ... acordo com o estrépito mecânico que sobe da rua e das margens do rio, as copas das árvores centenárias usam um verde que já vira para o amarelo...por baixo, um homem empunhando uma máquina barulhenta espanta as folhas castanhas, mortas e estaladiças sob os pés de quem passa.
O pequeno-almoço torna-se substancial, talvez pela falta de um jantar ou conveniente ceia que não houve.Contudo, fome não era a sensação sentida, apesar de ter levado horas a despedir-me do meu quarto habitual e a apossar-me do novo, este que irá acolher-me por duas semanas. E tal é a dificuldade do desapego que viajo sempre com imensa bagagem, mesmo que por breves dias...com pena de não ser caracol e levar a casa atrás.
Cá fora, o ar é frio, carregado da humidade que vem do rio Um sol amarelado e tímido penetra por entre o copado ainda muito cerrado das vetustas árvores.
Sem muita vontade, vou sair para as humidades pálidas, penugentas, da manhã que cresce... Ainda sem me decidir, parada no átrio, perto da porta, reparo em possíveis tendências da moda: parka azul-céu com muitas flores acompanhando umas calças esgarçadas nos joelhos com pequenos e múltiplos pontos brilhantes incrustados nas mesmas, que sobem dos joelhos até às ancas. Saltos em agulha também me saltam aos olhos sob sapatos fechados... A mulher , porém, rói as unhas como adolescente. Perto da recepção, julgo que faça parte de um grupo que acabe de chegar.
Enganei-me: preparam-se para o chek-out, segundo ouvi, entretanto. Afinal a quase ausência de bagagem reflecte que vieram passar um breve fim-de-semana. Daí que passeiem por ali admirando a decoração do átrio ["não há dúvida que é um palácio" - ouço também].
Ainda à porta, a humidade gelada da manhã cinza está a apanhar-me as articulações ao nível dos joelhos... e saio, por fim, quando as kamucásias nos vasos tomaram a atenção dos três homens do grupo da mulher vestida de azul e flores, e calças com falsos diamantes incrustados no tecido ferido nos joelhos.
Por portas diametralmente opostas,  saiu o grupo e  deu-me coragem para sair também.
***
Precisamente há um ano, o fogo rondava a serra aqui à volta, impelido por ventos descontrolados e traiçoeiros. Há um ano, sufocava-se aqui com ondas de fumo cinzento, sufocante...E gentes sofriam de ansiedade e terror. E eu também por aqui me encontrava.

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